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quarta-feira, 29 de julho de 2015

Volubilidade dos Fenômenos*


"Desde esse dia, cada instante de minha vida adquiriu para mim o sabor de novidade de um dom absolutamente inefável. Assim vivi numa quase perpétua estupefação apaixonada. Alcançava muito depressa a embriaguez e comprazia-me em andar numa espécie de aturdimento.

Por certo quis beijar tudo o que encontrei de riso nos lábios; quis beber o que encontrei de sangue nas faces, de lágrimas nos olhos; e morder a polpa de todos os frutos que dos galhos se inclinaram para mim. Em cada albergue uma fome me saudava; diante de cada fonte uma sede me esperava - uma sede particular diante de cada uma - e almejara outras palavras para marcar meus outros desejos

de marcha, onde se abria uma estrada;
de repouso, onde me convidava a sombra;
de nado, à margem das águas profundas;
de amor ou de sono ao pé de cada leito.

Botei intrepidamente a mão em todas as coisas e acreditei ter direitos sobre cada objeto de meus desejos. (Demais, o que almejamos, Nathanael, não é tanto a posse, é o amor.) Que toda coisa se irise diante de mim! Que toda beleza se revista e se matize de meu amor."

(*) Texto de André Gide em "Os Frutos da Terra"
Imagem de Wolney Fernandes

terça-feira, 28 de julho de 2015

O Paciente Inglês


"Tudo que eu queria era andar numa terra que não tivesse mapas"

A frase acima encerra um dos parágrafos mais bonitos de "O Paciente Inglês". Nessas poucas palavras residem os principais temas que atravessam essa história de amor escrita por Michael Ondaatje. Em suas entrelinhas estão o desejo de mudança, o nomadismo proeminente dessa vontade e as tramas multiculturais pelas quais os personagens são enredados.

"Há um mês especial na vida deles durante o qual dormem um ao lado do outro. Um celibato formal entre os dois. Descobrindo que no amor pode haver toda uma civilização, todo um país aberto à frente deles."

Nos últimos dias da Segunda Guerra Mundial acompanhamos a trajetória de Hana, enfermeira canadense que decide cuidar sozinha de um homem ferido numa vila abandonada na Toscana. Vão se juntar a ela e seu paciente, um espião italiano chamado Caravaggio e Kip, um indiano cujo ofício é desarmar bombas escondidas naquele território devastado pela guerra. O passado dessas quatro figuras solitárias é desnudado, deixando à mostra as inquietações e as mazelas que carregam depois do conflito mundial que acabaram de testemunhar. 

"Caravaggio fica ali sentado em silêncio, os pensamentos perdidos entre os ciscos flutuantes. A guerra o desequilibrou e não é capaz de voltar para nenhum outro mundo desse jeito, com o aprumo ilusório que a morfina promete."

Confinados num espaço abandonado e à mercê de uma melancolia que orienta o modo de vida naquele momento, esses personagens tentam sair, cada um a seu modo, do espaço limitado e demarcado pelas diferenças geográficas que, de certa forma, acabaram por definir seus destinos.

Escrito de modo não linear e entrecruzando tempos verbais e narrativas distintas, o livro é permeado por cenas que, à princípio, podem soar como episódicas, mas que, aos poucos, revelam conexões inteligentemente arquitetadas. Como ponto central, temos a história do misterioso paciente que teve seu corpo queimado depois de um terrível acidente aéreo. É pela revelação sutil do que aconteceu a esse personagem que temos acesso aos demais fatos que afetam cada uma daquelas pessoas.

A escrita de Ondaatje é refinada e salpicada de referências advindas da arte e isso faz da história um almoxarifado com boas indicações literárias e musicais (confira a playlist no final desse texto). Os personagens carregam uma certa erudição que acaba por nos ajudar na compreensão de suas motivações ao longo da história. Há, por exemplo, um livro de Heródoto, cultuado pelo paciente inglês que vai salpicando a narrativa com citações e amarrando cada detalhe com maestria. Os amantes de literatura irão se deliciar com o modo com o qual os livros se revelam importantes para a condução da vida daquelas pessoas. Há uma biblioteca no local onde se passa a história e as cenas envolvendo leituras são particularmente belas. 

"Ela parou de ler e ergueu os olhos. Saindo da areia movediça. Ela estava evoluindo. Era assim que o poder mudava de mãos. Enquanto isso, com a ajuda de uma anedota, eu me apaixonava. Palavras, Caravaggio. Elas têm um poder."

Outra característica marcante são os espaços em branco deixados entre uma cena e outra, como se o autor quisesse que preenchêssemos esses espaços fazendo de nós, uma espécie de co-autores. Minha experiência de leitura foi curiosa porque nas primeiras cinquenta páginas eu não conseguia adentrar na história e na segunda metade do livro eu simplesmente não conseguia sair dela. Creio que a diferença dessas aproximações só aconteceu quando eu passei a fazer pontes entre uma cena e outra. Foi só quando eu me propus a preencher os vazios deixados pelas cenas criadas pelo autor que a leitura rendeu. Escutei as músicas citadas, vasculhei as imagens marcantes e mergulhei nas referências literárias apresentadas no texto e isso ajudou bastante nessa imersão que o livro possibilita. 

Aliás, a versão cinematográfica da obra se aproveita desse recurso e faz isso com muita propriedade, recheando cada uma dessas possibilidades interpretativas com sentidos que, a meu ver, estão muito bem alinhados com aqueles que eu mesmo fui criando enquanto lia. Desse modo, livro e filme se complementam com uma precisão bem rara de se ver em adaptações do gênero. A principal diferença entre um e outro reside no final, mas a alteração feita no cinema é tão boa que me fez desejar vê-la no livro.

"Morrer significa que a gente passa para a terceira pessoa?"

Terminei a leitura muito apegado aos personagens e com aquela vontade de ficar um pouco mais naquela paisagem iluminada por uma vela e pelos clarões das explosões. Ler "O Paciente Inglês" possibilitou-me diversos deslocamentos internos [a imagem do Davi e Golias ainda me inquieta] e propiciou uma das melhores leituras do ano.

Pra terminar, uma pequena playlist sugerida nas páginas do livro e capturada nas cenas do filme:
2. My Romance - Lorenz Hart e Richard Rodgers
3. Honeysuckle Rose - Django Reinhardt
4. The Wang Wang Blues - Benny Goodman
5. Rupert Bear - Gabriel Yared

sexta-feira, 24 de julho de 2015

A maturidade na palma da mão


"Existe um quadro de Caravaggio, feito no final da vida. Davi com a cabeça de Golias. Nele, o jovem guerreiro, com o braço bem esticado, segura a cabeça do gigante Golias, velha e destroçada. Mas não é essa a verdadeira tristeza no quadro. Presume-se que o rosto de Davi seja um retrato de Caravaggio quando jovem e a cabeça do Golias, o seu retrato na época em que pintou o quadro, um velho. O jovem julgando a idade na ponta de seu braço estendido. O julgamento da própria mortalidade."

Depois de ler esse trecho e olhar para a pintura passei a me perguntar: Como o Wolney de vinte anos atrás contemplaria o Wolney de agora? Que tipo de Golias eu me tornei?

Trecho do livro "O Paciente Inglês" de Michael Ondaatje
Pintura de Caravaggio

segunda-feira, 13 de julho de 2015