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quinta-feira, 11 de junho de 2015

Olhe nos meus olhos


Tenho especial interesse por narrativas em primeira pessoa e cada vez mais tenho buscado referências que possam me mostrar outros jeitos de ver/ser/estar no mundo. "Olhe nos meus olhos" (título da edição brasileira, pois essa que carrego na foto é portuguesa) é um bom exemplo de como é preciso estar atento para as diferenças que nossas humanidades carregam. Portador da síndrome de Asperger, uma espécie de rastro do autismo que confere um conjunto de peculiaridades a seus portadores, John Elder Robison foi motivado a escrever suas percepções e reações diante de situações cotidianas e fez delas essa obra fascinante.

O livro é um relato sincero, e acima de tudo, muito bem articulado em torno de uma visão de mundo que confere uma lógica totalmente distinta daquela a qual estamos acostumados. Os Aspergers são muito práticos e nada políticos e isso gera problemas de convivência. "Me olha direito, rapaz!" foi praticamente um mantra que John Elder ouviu durante toda a infância e adolescência e que, de certo modo, foi o disparador para que se percebesse diferente das outras pessoas.

"Nem sequer percebia o que queria dizer olhar alguém direito. E no entanto sentia-me envergonhado, porque as pessoas esperavam que eu o fizesse, e eu sabia disso e não fazia. Então o que havia de errado comigo?"

Pelas páginas do livro, o autor vai desfiando fatos da infância, da convivência com pais problemáticos e da dificuldade em se ver perdido em meio a diagnósticos que nunca davam conta de abarcar seus anseios e limitações. Ele só foi diagnosticado com Asperger aos 40 anos. Entendemos a cabeça de John porque ele explica o tempo todo o que pensa, qual o motivo para alguns comportamentos e como ele encara os acontecimentos da vida.

"Sinto imensa dificuldade  em decifrar pessoas. Sou incapaz de olhar para alguém e perceber se gosta de mim, ou se está zangado, ou simplesmente à espera de que eu diga qualquer coisa. Não tenho problemas desses com as máquinas."

Comecei a leitura do livro gostando bastante, mas ali pela página 100 quando ele sai de casa e vai trabalhar como engenheiro de som, a leitura pareceu ficar meio truncada, as descrições feitas por John Elder me pareceram técnicas demais e por vezes, entediantes. No entanto, umas cem páginas depois nos vem a explicação para a mudança no tom da narrativa:

"As minhas notas dessa época são monótonas e desprovidas de inflexão ou de emoção. Eu não escrevia acerca dos meus sentimentos porque não os compreendia. Presentemente, uma maior percepção da minha vida emocional permite-me expressá-la, tanto verbalmente como por escrito."

E daí em diante o livro retoma sua atmosfera inicial e culmina com uma descrição emocionante de como ele conseguiu se adaptar e se [re]aproximar daquilo que, de certa forma, foi obrigado a abandonar. Achei particularmente bonita a parte em que ele reflete como o contato com a arte (músicos e pessoal de efeitos especiais) se revelou uma sorte porque foi aceito e bem acolhido, uma vez que, nessa área, as pessoas não se assustam tanto com a diferença.

Dividida em trinta partes, a narrativa pode até soar episódica, pois é mesmo muito difícil condensar uma vida inteira em 300 páginas. No entanto, vale uma espiada, até para aqueles que, diferente de mim, não sentem certa afinidade com vários dos comportamentos descritos no livro.

"A síndrome de Asperger não é uma doença, é uma maneira de ser. Não há nenhuma cura, nem é preciso. Há, no entanto, a necessidade de conhecimento e de adaptação por parte das crianças com Asperger, de suas famílias e de seus amigos."

P.S.: Duas outras referências trazidas à luz durante a leitura de "Olhe nos meus olhos":
a) A apresentação do livro é feita pelo irmão de John Elder, o também escritor Augusten Burroughs que escreveu suas memórias em um livro chamado "Correndo com Tesouras" que ainda não conheço, mas fiquei com vontade de ler.
b) A indicação do livro "O estranho caso do cachorro morto" de Mark Haddon, que eu já li e, apesar de ser uma obra de ficção, contém muitas informações sobre o trabalho do autor com crianças autistas.

Foto: Wolney Fernandes

3 comentários:

Eder disse...

Correndo com tesouras é fantástico, Wolney. Desconcertante na maior parte do tempo, tb é autobiográfico e segue o estilo de cada capítulo um episódio. E que família é aquela?!?

Cláudio Araújo disse...

Ótimos comentários, percepções, da obra! Fiquei curioso e vou já olhar por aqui se o encontro. O tema por si só é muito interessante e, como ele próprio fala "Há...a necessidade de conhecimento e de adaptação..." de todas as partes! Já tive a experiência de lidar com um adolescente com síndrome de Asperger e realmente me senti um tanto "analfabeto", é outro mundo, porém um mundo encantador!
Abraço
Cláudio Araújo

Claudia Leonardi disse...

Oi Wolney
Adorei seu blog. Parabens!
Amo este livro, infelizmente emprestei e a pessoa perdeu...e ele está esgotado :(
Tbe gostei muito do Estranho Caso do Cachorro Morto e de tbe de Passarinha.
Bjs

www.blogdaclauo.com