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terça-feira, 23 de junho de 2015

Hanói - Felicidade Sussurrada


Primeiro foi "Rakushisha" que delicadamente revelou-me a escrita precisa da Adriana Lisboa. Depois veio "Um Beijo de Columbina" com sua capacidade de surpreender a cada nova página. "Azul-Corvo" me fez entender o quanto a autora consegue criar personagens cativantes e agora, "Hanói" me faz proclamar em sussurros de puro encanto que Adriana Lisboa passou a ser uma das minhas escritoras favoritas.

"Esbarramos, trocamos um olhar, uma palavra, seguimos em frente. E a marca fica, o registro daquele evento na memória de um universo ao qual tudo importa."

"Hanói" começa com um anúncio de morte, mas cada parágrafo do livro parece recitar a beleza da vida em suas reentrâncias. O trompetista David mora em Chicago e esbarra em Alex ao receber a notícia de uma doença terminal. Alex é uma garota com ascendência oriental e cujo amadurecimento foi acionado por uma gravidez precoce. Os dramas desses dois jovens são entrelaçados por uma história de deslocamentos e renúncias onde os novos arranjos que eles se vêem obrigados a fazer se cumprem pela vontade de não entregar os pontos, mas de seguir adiante.

"Mas as pessoas às vezes vivem mesmo sem ter o bastante para viver."

De origens distintas, Alex e David se ajudam mutuamente e compõem um mosaico de identidades híbridas que funciona como pano de fundo do romance. Alex é filha de mãe vietnamita e mãe de um menino cujo pai é negro. David é latino, filho de mãe mexicana e pai brasileiro. Esse painel multicultural evidencia embates e diferenças, mas é pela semelhança que vemos ecoar o desenvolvimento dos dramas dos protagonistas.

E é justamente no desenvolvimento da história que a escrita da Adriana revela delicadezas e mostra, por meio de ótimas metáforas, as intensidades que os encontros apresentados no livro acionam. A música exerce papel fundamental no modo como a história é narrada e funciona como uma espécie de fator aglutinador diante das diferenças que limitam a comunicação entre as pessoas.

"Não precisariam saber o nome um do outro, não precisariam nem mesmo falar uma sílaba da língua do outro. Não é necessário traduzir ao húngaro ou ao chinês o tema de "Seven Steps to Heaven", por exemplo. David poderia pegar o trompete, e o garoto no piano e eles seriam parte de alguma coisa."

O jazz, muito presente no cotidiano de David, realça sua capacidade de improvisar, de viver de um jeito diferente daquele ao qual está acostumado. Em meio às surpresas sugeridas pelo jazz [escute a playlist no final desse texto], a autora também consegue criar imagens simples, mas extremamente bonitas para as cenas que envolvem um mergulho mais profundo nas emoções dos personagens.

"Ele entrou no mercado asiático, acenou para Alex e pegou um cesto de plástico que encheu com itens pequenos. O critério era um só: que levasse bastante tempo para passar pelo caixa. Por cima, colocou um pé de alface, feito um buquê."

Ou ainda:

"Para ele, contudo, a concha não era espiral logarítmica nem era o documento de identidade de um deus: era a sua infância, era a sua mãe, era aquela praia, aquele verão."

Hanói, "a cidade entre rios" que dá título à obra é, ao mesmo tempo, origem e destino. "O lugar mais bonito do mundo" é local da família vietnamita de Alex e horizonte imaginado e sonhado por David.

Ao entrelaçar elementos cotidianos com dramas tão profundos, Adriana consegue dizer dos sentimentos, sejam eles bons ou ruins, sem necessariamente colocar o dedo na ferida. E quando o faz, o faz com cuidado, respeitando os silêncios e as pausas tão necessárias diante daquilo que as palavras nem sempre dão conta. Seus livros recitam e soletram felicidades, mas o fazem por meio de sussurros. Saber ouvi-los parece ser o melhor da festa.

"A felicidade não era ruidosa nem saía em capa de revista."

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Durante a leitura coletei dez músicas de um conjunto bem vasto que a autora vai referenciando ao contar a história. Cada uma, a seu modo, ajuda no clima e na composição rítmica desse romance cativante. Confira!

01. Sweet Georgia Brown - Ella Fitzgerald
02. A Cor da Esperança - Cartola
03. Radio Song - Esperanza Spalding
04. Maiden Voyage - Herbie Hancock
05. Little Wing - Jimi Hendrix
06. Samba Triste - Jackie & Roy
07. Seven Steps to Heaven - Miles Davis
08. Palhaço - Egberto Gismonti
09. Blue in Green - Ralph Towner & Gary Burton
10. Circle - Miles Davis

Foto: Wolney Fernandes

quarta-feira, 17 de junho de 2015

Último toque


17 de junho de 2015 - Hoje o meu tempo toca o tempo do meu pai pela última vez, pois passo a ter a idade que ele terá para sempre. Dele, o relógio e toda saudade do mundo.

terça-feira, 16 de junho de 2015

Ulysses - O que é de gosto é regalo da vida


A ideia era bem simples: começar a ler Ulysses do James Joyce no Bloomsday de 2014 (para entender do que se trata, clique aqui). Apesar de imaginar que a tarefa seria árdua, não pensei que iria demorar um ano para dar conta de acompanhar as 18 horas do dia do Sr. Bloom. Foi a primeira vez que fiquei tanto tempo nas páginas de um livro. E, de antemão, já aviso que foi uma experiência única e permeada por estranhamentos. Foi difícil? Foi. Valeu a pena? Demais! Vou tentar explicar os porquês.

Ulysses foi escrito em 1922 tendo a Odisséia de Homero com base. Toda a história se passa em um único dia: 16 de junho de 1904. No decorrer desse dia, acompanhamos, separadamente, as peripécias do Sr. Bloom e de Stephen Dedalus até eles se encontrarem. Os dois são movidos por toda sorte de acontecimentos - encontros, traições, notícia de morte, visitas em museus e bordéis são embalados por um ritmo ditado pelo fluxo de consciência dos personagens e outros caprichos do autor. E não são poucos os labirintos e estilos permutáveis utilizados por Joyce para contar essa história.

O modo como o autor consegue arquitetar estruturas muito contemporâneas no que diz respeito à forma da escrita impressiona e, por vários trechos, foram essas variações que me ajudaram a avançar na leitura já que pelo conteúdo nem sempre é possível se manter conectado. Ler Ulysses é mais uma experiência estética do que qualquer outra coisa. Desconfio que quem entra no livro querendo compreendê-lo apenas pelos tons da racionalidade não vai conseguir terminá-lo. Há trechos onde a invenção e recriação da língua ditam outros modos de compreensão.

“Coloque o coitadinho do bisavô Craahraarc! Oioioi toumuitcontent craarc toumuitocontentderrevervocês oioi toumuitr crptschs.” [p. 243]


Há, ainda, partituras musicais, trechos escritos com abreviaturas e páginas e páginas sem nenhuma pontuação para aguçar outros sentidos diante da obra. A leitura é desconcertante, exigente e demanda foco. Pela minha experiência não se lê Ulysses sem um mínimo de empenho e é exatamente por isso que é preciso esperar o momento certo para cumprir a travessia. Com isso não quero dizer que é um livro para poucos. De modo algum! Creio que todo mundo consegue atravessá-lo, mas é preciso ter disposição, disciplina e montar estratégias para fazer isso. 

Um dos mecanismos de leitura que mais me ajudou foi não me fixar apenas no conteúdo, mas tentar me envolver com a forma da escrita que é absurdamente inventiva. Gosto de pensar a escritura como um espaço para a subversão, um lugar para triturar o que nos parece impronunciável.

O tom irônico e debochado com o qual Joyce descreve determinadas passagens, por vezes, ajudam a leitura fluir. A impressão que dá é que ele estava se divertindo bastante enquanto escrevia. Temas como a Igreja, a erudição vazia, o sexo e as artes são os alvos principais da fina ironia destilada pelo autor.

"Creem em Dê os Paus, todolaceroso, criador do inferno na terra e em Marujo Tristo, esse filho da luta, que foi concebido pelo escândalo tanto, nasceu da viagem marinha, padeceu o serviço completo, foi cicatrizado, exposto e bem sovado, gritou como um danado, e no terceiro dia relevantou da cama, voltou aos seus, está sentado a boreste de seu país de onde há de vir penar na vida e a postos." [p. 529].

O modo como o autor profana e brinca com obras clássicas é, em grande parte, o melhor da leitura. Quando Joyce pega, por exemplo, um trecho de Hamlet de Shakespeare e o coloca no diálgo que reproduzo abaixo, sinto que ele faz isso com muita propriedade:

“- A lua, o professor MacHugh disse. Ele esqueceu o Hamlet.
- Que vela a vista toda ao longe e espera por que o orbe luminoso da lua fulgure a irradiar sua argêntea efulgência...
- Ai! O senhor Dedalus gritou, ventilando um lamento desesperançado, bosta com cebola! Chega, Ned. A vida é curta demais.” [p. 259] 


São muitas as referências a outras obras que entremeiam as passagens do livro e é um perigo se ater a todas elas. Quando percebi que as tais referências estavam deixando a leitura ainda mais intrincada, minha estratégia foi marcar aquilo que instigou minha curiosidade para, depois da leitura concluída, voltar e esmiuçar cada uma delas.

O que torna essa obra singular é seu caráter híbrido, aberto e desconcertante. Um romance experimental por onde o autor vai desfiando modos de escrever que se complementam, mesmo que por atrito. Observe esses dois trechos e suas disparidades estilísticas:

"Olho nos polícia. Como? Viu ele hoje num enreto? Amigo seu esticou as canelas? Crendiospai! Coitadim do criolim! Cê não me diga uma coisa dessa, Pold, meu comparsa! I êis chorô qui jorraro u'as lágrima uns chôru moiádu purquiumamígu Padney foi levádu num sácu prêtu?" [p. 663]

"Destarte, estando o senhor Bloom lastreado pela circunstância de que um dos botões de trás de sua calça havia, para variar o veterano anexim, batido os botões, conquanto, assumindo plenamente o espírito da coisa, ele heroicamente fizesse pouco do infortúnio." [p. 868]

Ao final da décima oitava hora do dia, já se leu de tudo um pouco sem que essas marcações estejam aparentes, pois a narrativa se mistura em degradês difíceis de serem definidos. O que me ajudou bastante quando eu me via perdido foi um esquema que agrupa cada hora do dia em uma tabela de referências incluída na apresentação da edição que eu li que foi essa da Penguin/Companhia que pode ser visualizada no início desse texto.

A terceira e última parte de Ulysses retoma uma narrativa mais linear e insere perguntas de toda ordem para perscrutar sentimentos vivenciados durante o dia pelos protagonistas. Uma espécie de exame de consciência que o Sr. Bloom faz antes de adormecer. São questões existenciais, listas, orçamentos e toda sorte de curiosidades. Uma delas em especial resume a experiência vivenciada pelos personagens principais - o maduro Sr. Bloom e o jovem Stephen Dedalus - em palavras que também poderiam ser atribuídas ao próprio autor:

"Teria Bloom descoberto fatores comuns de similiaridade entre suas reações respectivamente semelhantes e dissemelhantes à experiência? Ambos eram sensíveis a impressões artísticas musicais em preferência a plásticas ou pictoricas. (...) Ambos obdurados por precoce treinamento doméstico e por hereditária tenacidade de resistência heterodoxa professavam sua descrença em várias doutrinas religiosas ortodoxas, nacionais, sociais e éticas."

Enfim, ao propor labirintos linguísticos em Ulysses, James Joyce evidencia sua apurada erudição, que nunca vem desprovida de questionamentos e está sempre conectada com aquilo que o cerca e que permeia seu cotidiano. Numa atuação invejável, o autor exibe uma capacidade técnica ao mesmo tempo que parece divertir-se com o próprio ofício. 

"O que é de gosto é regalo da vida" [p. 598]

Conseguir chegar ao fim desse calhamaço me deixou com uma sensação diferente de qualquer outra que tive diante de uma obra literária. Uma espécie de amor bandido, daqueles que maltratam mais que acariciam e, ainda assim, você não larga. Passei um ano nadando nas águas dessa escrita que ora me permitiu mergulhos profundos, ora me lançou para a superfície numa movimentação inquieta, difícil e ainda assim, permeada por descobrimentos que hão de me acompanhar vida afora. Sobrevivi. Ufa!

Imagem: Wolney Fernandes

quinta-feira, 11 de junho de 2015

Olhe nos meus olhos


Tenho especial interesse por narrativas em primeira pessoa e cada vez mais tenho buscado referências que possam me mostrar outros jeitos de ver/ser/estar no mundo. "Olhe nos meus olhos" (título da edição brasileira, pois essa que carrego na foto é portuguesa) é um bom exemplo de como é preciso estar atento para as diferenças que nossas humanidades carregam. Portador da síndrome de Asperger, uma espécie de rastro do autismo que confere um conjunto de peculiaridades a seus portadores, John Elder Robison foi motivado a escrever suas percepções e reações diante de situações cotidianas e fez delas essa obra fascinante.

O livro é um relato sincero, e acima de tudo, muito bem articulado em torno de uma visão de mundo que confere uma lógica totalmente distinta daquela a qual estamos acostumados. Os Aspergers são muito práticos e nada políticos e isso gera problemas de convivência. "Me olha direito, rapaz!" foi praticamente um mantra que John Elder ouviu durante toda a infância e adolescência e que, de certo modo, foi o disparador para que se percebesse diferente das outras pessoas.

"Nem sequer percebia o que queria dizer olhar alguém direito. E no entanto sentia-me envergonhado, porque as pessoas esperavam que eu o fizesse, e eu sabia disso e não fazia. Então o que havia de errado comigo?"

Pelas páginas do livro, o autor vai desfiando fatos da infância, da convivência com pais problemáticos e da dificuldade em se ver perdido em meio a diagnósticos que nunca davam conta de abarcar seus anseios e limitações. Ele só foi diagnosticado com Asperger aos 40 anos. Entendemos a cabeça de John porque ele explica o tempo todo o que pensa, qual o motivo para alguns comportamentos e como ele encara os acontecimentos da vida.

"Sinto imensa dificuldade  em decifrar pessoas. Sou incapaz de olhar para alguém e perceber se gosta de mim, ou se está zangado, ou simplesmente à espera de que eu diga qualquer coisa. Não tenho problemas desses com as máquinas."

Comecei a leitura do livro gostando bastante, mas ali pela página 100 quando ele sai de casa e vai trabalhar como engenheiro de som, a leitura pareceu ficar meio truncada, as descrições feitas por John Elder me pareceram técnicas demais e por vezes, entediantes. No entanto, umas cem páginas depois nos vem a explicação para a mudança no tom da narrativa:

"As minhas notas dessa época são monótonas e desprovidas de inflexão ou de emoção. Eu não escrevia acerca dos meus sentimentos porque não os compreendia. Presentemente, uma maior percepção da minha vida emocional permite-me expressá-la, tanto verbalmente como por escrito."

E daí em diante o livro retoma sua atmosfera inicial e culmina com uma descrição emocionante de como ele conseguiu se adaptar e se [re]aproximar daquilo que, de certa forma, foi obrigado a abandonar. Achei particularmente bonita a parte em que ele reflete como o contato com a arte (músicos e pessoal de efeitos especiais) se revelou uma sorte porque foi aceito e bem acolhido, uma vez que, nessa área, as pessoas não se assustam tanto com a diferença.

Dividida em trinta partes, a narrativa pode até soar episódica, pois é mesmo muito difícil condensar uma vida inteira em 300 páginas. No entanto, vale uma espiada, até para aqueles que, diferente de mim, não sentem certa afinidade com vários dos comportamentos descritos no livro.

"A síndrome de Asperger não é uma doença, é uma maneira de ser. Não há nenhuma cura, nem é preciso. Há, no entanto, a necessidade de conhecimento e de adaptação por parte das crianças com Asperger, de suas famílias e de seus amigos."

P.S.: Duas outras referências trazidas à luz durante a leitura de "Olhe nos meus olhos":
a) A apresentação do livro é feita pelo irmão de John Elder, o também escritor Augusten Burroughs que escreveu suas memórias em um livro chamado "Correndo com Tesouras" que ainda não conheço, mas fiquei com vontade de ler.
b) A indicação do livro "O estranho caso do cachorro morto" de Mark Haddon, que eu já li e, apesar de ser uma obra de ficção, contém muitas informações sobre o trabalho do autor com crianças autistas.

Foto: Wolney Fernandes