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domingo, 25 de janeiro de 2015

A Chave de Casa


"Como é cruel (e bonito) que a vida continue depois de você."

Uma neta recebe do avô a chave da casa que ele deixou na Turquia antes de emigrar para o Brasil. Uma mulher revive os dramas de uma relação amorosa com feridas que parecem impossíveis de cicatrizar. Uma filha faz memória da morte e da doença da mãe reverberando histórias de um passado imerso em exílios, dores e outras intensidades.

Intercalando essas três linhas narrativas, Tatiana Salem Levy borda, com delicadeza, sua própria identidade no livro "A Chave de Casa".  Ao empreender uma escrita de si, a autora consegue entrelaçar amor, memória, medo, sexo e outros temas fundantes da natureza humana.

"Nasci no exílio: e por isso sou assim: sem pátria, sem nome. Por isso sou sólida, áspera, bruta. Nasci longe de mim, fora da minha terra - mas, afinal, quem sou eu? Que terra é a minha?"

Cada história é contada como se estivéssemos diante de estilhaços de memória que, aos poucos, vão compondo um mosaico em torno da narradora. Impulsionada a percorrer seu passado, ela parte em busca da casa apontada pelo avô num país estranho, mas onde também estão fincadas suas raízes. Neta de judeus vindos da Turquia, nascida em Portugal e brasileira desde a primeira infância, a autora parece colocar espelhos diante de si mesma para encarar e interrogar suas dores e escarafunchar seus desejos.

Pouco à vontade diante do desenho intrincado que se cria entre o ser mulher, judia, brasileira, filha e amante, a protagonista vai revelando suas intimidades de modo muito verdadeiro - ou pelos menos com aquilo que há de verdade na literatura - e isso nos conecta a ela num ótimo jogo de identificações revelando uma espécie de universalidade naquilo que é tão particular.

O tom melancólico da escrita de Tatiana é colocado em cheque pela autora quando ela própria cria diálogos com a mãe morta em um contraponto deveras interessante sobre as tintas que uma escrita pode pintar sobre a realidade ou sobre o que sentimos/pensamos/fazemos:

"[Por que levar tudo para o lado da dor? Por que sempre assim, desde pequena? A história do seu avô não é feita só de perdas. Essa história que você conta também tem outras histórias. Por que não narra, por exemplo, a alegria de desembarcar em terra tão acolhedora como a nossa? Por que não conta que foi a partida que deu a ele tudo o que construiu? Que, ao desembarcar no Brasil, seu avô encontrou uma tranquilidade que não tinha antes? Por que insistir em palavras tão doídas?]"

O livro é um belíssimo mapeamento sobre intimidade, memória e sobre o que significa ser quem se é diante daquilo que, mesmo dolorido ou escamoteado, também nos constitui. E é bonito porque a história chega a dar pistas, mas nunca responde totalmente, as questões que orbitam em torno desse anseio que nos acompanha e nos faz caminhar à procura de uma casa cuja fechadura aceite nossa chave.

Foto: Wolney Fernandes

Um comentário:

Cris disse...

Que beleza de resenha!!
Esse livro me marcou muito, e dele guardo uma passagem muito significativa que diz mais ou menos assim (estou citando de memória, perdoe-me por não citá-la direto da fonte): "o medo é minha dor."
Parabéns pelo blog!Estou encantada com as suas postagens!!
Abraço,
Cris (do instagram @prosapoesia)