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segunda-feira, 8 de setembro de 2014

Entre a delicadeza e a brutalidade de "Nossos Ossos"


"Quando eu morrer me enterrem dentro do coração de meu pai." 
[Amarildo Anzolin]

Feito movimento espiralado, o final de "Nossos Ossos" me remeteu, novamente, ao seu começo. Uma espécie de repetição sugerida pelo modo como a trama é estruturada. Minha vontade de releitura imediata, de escavar a escrita de Marcelino Freire foi impulsionada pelo desejo de buscar significados perdidos entre um parágrafo e outro, entre uma palavra e outra. Como se na dureza do que estava escrito ali houvesse uma fragilidade que precisava ser apurada.

O livro conta a história de Heleno, dramaturgo pernambucano que consolida sua carreira em São Paulo. Diante do assassinato de um amante e de uma crise interna, ele precisa lidar com o desejo e a burocracia de remeter o cadáver "do boy" para o interior do Nordeste. O livro é dividido em duas partes e capítulos bem curtos que se alternam entre a saga vivenciada no presente e algumas memórias desfiadas entre a infância e a chegada do protagonista na capital paulista.

Tendo o sofrimento como marca determinante para narrar a história de seu protagonista, Marcelino Freire deixa entrever doçuras e fragilidades entre as frestas abertas pela luxúria e ironia constantes. Uma gama de matizes emocionais que deixam o livro bem mais complexo do que aparenta. 

"Capa de couro bovino, espada de fêmur, saiote de cóccix e uma máscara natural, a minha cara borrada de carvão, gesticulava feito um demônio, assustava a todos com a minha voz de trovão saída do estômago, em pé, eu, sobre uma pedra, no deserto que foi a minha infância. 
Minha dramaturgia veio daí, hoje eu entendo, desses falecimentos construí meus personagens errantes, desgraçados mas confiantes, touros brabos, povo que se põe ereto e ressuscitado, uma galeria teimosa de almas que moram entre a graça e a desgraça."

A decisão do autor em estruturar os parágrafos só com o uso de vírgulas incomoda no início, mas logo a gente entra no ritmo e a leitura parece fluir com mais facilidade. Marcelino explica melhor esse recurso em uma entrevista que pode ser vista aqui.

Há ainda uma espécie de denúncia social diante da violência e da intolerância que rondam imigrantes, homossexuais e qualquer pessoa que não se limita a "rezar" segundo a cartilha da heteronormatividade. No entanto, essa denúncia não é permeada pelo compadecimento, mas pelo desnudamento de situações de dor que expõem, paulatinamente, as mazelas de uma sociedade machista e violenta. Há alguns escorregões aqui e ali, como por exemplo a notícia de que um dos personagens é soropositivo e que, a meu ver, é desnecessária para o andamento da história que, na altura dessa revelação, já se apresenta muito bem encaminhada. 

A escrita, que oscila entre a delicadeza e a brutalidade é capaz de criar imagens marcantes - "(...) seu rosto era feito de um pergaminho, estava escrito, nos livros mais esquecidos, tanto sofrimento". É preciso fôlego para dar conta das cores intensas com as quais o autor pinta o retorno do seu personagem à sua terra natal. 

"(...) por que a gente, em vez de ser enterrado em um chão, seco, não faz do oceano o nosso leito derradeiro, nosso abismo prateado, um céu ao fundo, vertical, abaixo, cheio de estrelas, luas, astros, planetas desconhecidos?"

Com o porte de uma novela, "Nossos Ossos" parece carecer de mais páginas e talvez também tenha sido isso que me levou à uma releitura imediata, com mais pausas, como se precisasse de mais tempo para chegar àquele final.

Sim, é um daqueles finais que nos deixam atordoados diante das revelações que ele contém. 

Mesmo amparado por um derradeiro recurso que abre brechas para dúvidas e inquietações acerca do que foi lido, o livro é honesto e marca, com qualidade, a estreia do autor nesse formato. Vale a pena uma conferida!
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"Nossos Ossos" foi uma leitura compartilhada com o Bruno LazzFar do canal Des Palavreando.

2 comentários:

Tati disse...

Oi Wolney, linda sua resenha!
Também senti isso no final, o desejo de recomeçar. Como se fossem várias histórias sendo contadas de várias pessoas, não só do Heleno, mas de todos que esbarram nessas barreiras do preconceito seja pra viver um grande amor ou pra conseguir o trabalho que sempre sonhou.
O final é muito bonito, também fiquei muito atordoada... Devia ter relido como você fez, imediatamente!
Beijo!
Vou ler mais do seu blog que é lindo!

Wolney Fernandes disse...

Tati, que ótimo saber que você gostou do texto e do blog. Volte sempre que quiser. A casa é sua!