Sempre que termino de ler um livro de Valter Hugo Mãe fico com
a sensação de que a língua portuguesa é o idioma mais bonito do mundo.
“Só existe a beleza se existir interlocutor. A beleza da
lagoa é sempre alguém. Porque a beleza da lagoa só acontece porque a posso
partilhar. (...) A beleza é sempre alguém, no sentido em que ela se concretiza
apenas pela expectativa da reunião com o outro.”
“A Desumanização” é o mais recente livro do aclamado
escritor português e parece o mais coeso e pungente dos que li até agora. No
entanto, talvez seja o mais difícil de acessar pela liberdade com a qual o
autor realiza sua escrita, notoriamente um pouco mais alargada no seu sentido
poético. As frases curtas parecem poemas que se ligam uns aos outros para
perscrutar a dor em suas características mais diversas. Lançado em setembro de
2013 e publicado no Brasil no primeiro semestre de 2014, o livro apresenta uma história
embalada pela tristeza de uma solidão espiritual ambientada nos fiordes
islandeses.
Halla, uma menina de 11 anos que perdeu sua irmã gêmea, desfia
amadurecimentos a partir do sentimento de perda que a acompanha e da
convivência com a dor de carregar o peso de duas almas.
“Tudo em meu redor se dividiu por metade com a morte.”
Por ser muito próxima da irmã morta, Halla se vê sozinha e
desamparada. Sigridur, “a irmã plantada”, era quem orientava os passos de Halla
rumo a um futuro sonhado fora daquele lugar.
“Quando for grande, Halla, não quero ser cozinheira das
baleias. Não vou ficar aqui encalhada a fazer doces para que elas se consolem.
Quando for grande quero ser longe.”
Ela traçava planos para ambas e isso acaba cavando um vazio
no peito da “irmã menos morta” que se vê solitária e sem direções possíveis. A
pulsação de vida parecia característica daquela que se foi e isso acaba
deixando a menina sem referências. Para piorar a situação, os pais das gêmeas, incapazes
de se curar dos exageros da morte, acabam por abandonar a filha viva de modos
distintos: a mãe pela negação e o pai pela apatia e constante perda da alegria
anterior. A relação familiar fica diferente e isso intensifica a dor do momento
vivido por Halla.
“A minha mãe, por seu lado, perdera o modo de se apaziguar.
Rejeitava cada coisa. Era rigorosa, não desculpava ninguém e não se desculpava.
Estava em guerra. Não sabia nada, na verdade, punha as mãos às cegas no mundo.
Como se estivesse viva num mundo morto.”
O fato da menina também passar por transformações físicas
típicas da sua idade, intensifica o caráter transformador que o percorre toda a
narrativa. Outro fator pungente desse processo é o lugar onde a história se
passa e o modo como é apresentado pelo autor.
A Islândia se desenha como uma paisagem forte e mística. Com
um quê de lugar misterioso e incompreensível. O antagonismo entre o gelo dos
glaciais e o fogo dos vulcões ao mesmo tempo deslumbra e dá medo. A imagem que
se evoca da natureza em todo o livro é muito bonita e a relação entre os que
vivem naquela terra e a própria terra parecem simbióticos, reforçando o caráter
vivo do lugar que condiciona muito a vida dos personagens e o desenvolvimento
da história.
“Chamávamos-lhes deus ou Islândia sem ter como atribuir a
cada nome um significado. As palavras eram inúteis para abordar algo que estava
proibido à pequenez humana. Qualquer nome não passava de uma blasfêmia, como qualquer
ideia que quiséssemos guardar segura acerca da grandeza de deus, da Islândia ou
da morte."
Todos esses fatores acumulados vão contando a história dessa
menina que, sem sombra de dúvidas, é uma das personagens mais fortes que eu já
acompanhei. E é estranho porque ela é apenas uma criança precisando assumir uma
sabedoria, um modo de se expor à vida mapeando cada mudança que a atravessa.
Ela muda ao longo da narrativa e a gente evolui com ela ao transferir seu olhar
do mundo para nossa própria realidade.
Tanto pela escrita, quanto pelo enredo, o livro é
arrebatador e vai desconstruindo as coisas e acrescentando a elas uma grande
carga poética que permanece conosco mesmo depois de terminada a leitura. É
também muito impressionante o modo como Valter Hugo Mãe consegue falar de amor,
sobretudo na dor e na perda, à partir de um olhar infantil que olha para o
mundo como se conseguisse apreender somente a essência daquilo nos cerca.
“Não guardes vazios os meus lugares. Deixa-me ir. Olha pelo
meu pai. Se ele te falar dos poemas, ouve tudo. É a única coisa que conta, a
poesia. No lugar da Islândia colocar um poema. No lugar do coração colocar um
poema. Depois, dizê-lo uma e outra vez, até ser tudo.”
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Livro: A Desumanização [5/5]
Autor: Valter Hugo Mãe
Editora CosacNaify
Foto: Wolney Fernandes
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