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segunda-feira, 31 de março de 2014

O Grito


Nasci na roça. Ajudei a arrancar feijão, cobri buracos com terra para a plantação brotar e quebrei milho para a pamonha. Na rabeira do arado, falar não podia porque era distração que a lida não permitia. Menino não reclama, escuta os bichos enquanto o sol, à pino, estica as horas o quanto pode.

Nas pescarias, peixe se fisgava com o silêncio do pescador. Na sala de aula, ouvia-se apenas o resmungo do giz sujando a lousa e conversar era o recheio do recreio. Em prosa de adulto, nem o olho era capaz de alcançar o assunto. A boca, então, nem se fala! 

Cresci sem muita vontade de falar, como se uma conversa interna e silenciosa pudesse dar conta do pouco que eu tinha para dizer. Havia também a gagueira que me fazia - e ainda faz - considerar dois tempos antes de pronunciar o que desejo. 

O silêncio nunca foi, para mim, uma língua estrangeira. Então, de onde vem essa vontade louca de gritar?

Imagem de Edvard Munch

terça-feira, 25 de março de 2014

Os Verbos Auxiliares do Coração


"Com o dedo enrugado, Deus toca o nosso coração."

Comprei esse livro por causa do título que, sem dúvida, é um dos mais bonitos que eu já vi. Depois do primeiro encantamento com o título, li que a história era sobre a morte de uma mãe e a relação com o luto e a perda à partir do olhar de um filho.

Nessa pesquisa acerca da obra, descobri ainda que na língua húngara (país de origem de Esterházy), não existem verbos auxiliares e em uma explicação arrebatadora acerca da escolha desse título, o próprio autor esclarece:

"Na língua húngara, não existem verbos auxiliares, então, no título eu me referi a algo que não existe, porque é algo de que não se fala. Por mais que se fale da perda, do luto, nada irá melhorar essa dor. Nada, nem se esse livro tiver sucesso. Quando se obtém sucesso, a vontade primeira é contar para a mãe. Como a mãe não está viva, isso perde o valor."

Ao ler isso, minha vontade dobrou de tamanho e minha expectativa em relação ao livro cresceu bastante. Por ter vivenciado uma situação de luto há pouco mais de três meses, vi nessa explicação um jeito de encarar esse sentimento colocando-o em perspectiva a outras experiências semelhantes.

Terminei a leitura há pouco e suspirei aliviado por ter conseguido chegar ao fim. Não porque o livro seja ruim, mas porque é uma obra tão densa e triste que a gente termina cada página sob o peso da dor.

Verdadeiramente, o livro é uma caixa de lembranças da morte da mãe do protagonista, o que já instigaria seu tema e concepção à um texto forte, mas Péter Esterházy eleva à potência máxima o sentimento de perda.

"A possibilidade de chorar se movimenta em mim feito um animal nojento. Um nó peludo, encharcado, um gambá, por exemplo. Ou um chacal pequeno. Ou um rato gordo. Grande espaços vazios se alternam em mim com terrenos negros, sombrios. Os corredores comunicantes são os intestinos. Meu estômago resmunga o tempo todo. Penso apenas em pratos finos, filé com trufas. Há um cheiro de esgoto em mim. Não. Não. Não há nada. Mãe só existe uma."

A estrutura da narrativa é fragmentada compondo uma espécie de labirinto da memória permeado por armadilhas para quem tiver coragem de encará-lo.

A escrita do autor oscila entre um tom mais intimista e um estilo amplamente ficcional e apesar do peso melancólico, em alguns momentos apresenta um sarcasmo que não poupa ninguém.

"Como em um plano de viagem antes do fim das férias de verão, aconselhei ao meu pai e aos meus irmãos para que mais tarde não chorássemos. 'Tenho calmante comigo', eu disse. A minha irmã me olhou de lado, assustada, meu irmão, segundo o costume, comia desbragadamente, a careta do meu pai dava a entender, 'um homem não fala assim'. "

ou ainda

"Se fosse possível escolher quem deveria ressuscitar, você acha que seria Jesus?"

Enfim, "Os Verbos Auxiliares do Coração" não é um livro fácil, mas exatamente por isso eu recomendo a leitura porque acredito que tem a capacidade de nos tirar de uma zona de conforto ao nos apresentar um estilo de literatura completamente fragmentada.

As páginas não são numeradas, a voz do narrador muda sem nenhum sinal visível dessa mudança (também não há capítulos) e no rodapé de cada página, citações de Camus, Borges e Lautréamont estabelecem pontes, diálogos e aproximações com o que está escrito ali.

Destaque para um projeto gráfico em perfeita sintonia com a obra, a começar pela capa que traz uma tarja preta adesivada sobre a foto deixando entrever apenas frestas da imagem que ela cobre. Uma metáfora perfeita sobre o modo como o mundo nos apresenta depois da morte de alguém querido.
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Livro: Os Verbos Auxiliares do Coração [4/5]
Autor: Péter Esterházy
Editora: CosacNaify 

domingo, 23 de março de 2014

Para Walderes Brito


A vontade de ler "A ausência que seremos" foi construída por um sentimento de perda. Um amigo muito querido havia me falado das belezas do livro e tínhamos combinado que ele leria algumas partes que o tocaram em um passeio de final de tarde que faríamos juntos em um dos parques de Goiânia.

O passeio nunca aconteceu conforme eu relatei aqui e, passados os primeiros dias de tristeza profunda pela perda do Walderes, em janeiro comecei a ler o livro.

A história, de cunho autobiográfico, gira em torno das memórias do autor Héctor Abad e suas experiências de infância à partir da relação afetuosa que mantinha com o pai, um médico sanitarista e professor universitário que lutou pelas áreas globais da saúde pública na Colômbia entre as décadas de 1950 e 1980.

Apesar das trezentas e poucas páginas, a leitura se prolongou até o fim de março. Esse prolongamento se deu em duas medidas. Na primeira delas, está o fato de que algumas partes do livro parecem repetitivas e algumas formulações parecem insinuar, incessantemente, um sentimento exagerado de admiração incondicional pela figura paterna.

"Sem esse amor exagerado que meu pai me deu, eu certamente teria sido uma pessoa muito menos feliz".

Mesmo que em alguns momentos o autor entregue algum sinal de autoconsciência sobre esse sentimentalismo exacerbado - "Não quero fazer uma hagiografia nem me interessa pintar um homem alheio às fraquezas da natureza humana" - fica a impressão de que esta é uma reflexão vazia de sentido, uma vez que ele não a seguiu à risca. Junto a afirmação excessiva da influência que o amor do pai exerceu sobre a vida do filho, há ainda a descrição do momento político pelo qual a Colômbia passava que, apesar de necessária para entendermos o contexto e as condições que levaram o pai à sofrer uma morte violenta, deixa a leitura entrecortada e sem a fluidez necessária para que ela se dê em ritmo contínuo.

No entanto, há uma outra medida que me deixou com um sentimento de orfandade depois de terminar a leitura quase três meses depois que a iniciei. Ler "A ausência que seremos" teve, pra mim, uma noção de prolongamento. Como se eu pudesse ouvir/dialogar com o Walderes por mais um tempo depois da sua própria ausência. E, por suscitar esse sentimento, eu gostaria de poder prolongar a leitura infinitamente.

A cada página lida, meus olhos buscavam trechos, palavras ou formulações de pensamento que pudessem sinalizar o que ele havia escolhido compartilhar comigo, mas nunca pôde. E nas primeiras duzentas páginas do livro eu não conseguia enxergar nada que chegasse perto desse desejo de partilha. Tive, então, que fazer uma pausa com medo de terminar o livro sem conseguir estabelecer esta conexão, sempre achando que eu tinha deixado passar alguma frase ou pensamento que o tivesse tocado de algum modo.

Foi então que, na última noite de sexta, ultrapassando os limites da segunda metade do livro, consegui ler nas palavras de Abad, as afinidades que eu desejaria partilhar com Walderes e, nessa inversão, pareceu-me que estava lendo não mais o autor colombiano, mas meu amigo pernambucano.

"Depois de mortos, ainda sobrevivemos por alguns frágeis anos na memória de outros, mas também essa memória pessoal, a cada instante que passa, está sempre mais perto de desaparecer. Os livros são um simulacro de lembrança, uma prótese para recordar, uma desesperada tentativa de tornar um pouco mais perdurável o que é irremediavelmente finito [...] E se minhas lembranças entrarem em harmonia com alguns de vocês, e se o que eu senti (e deixarei de sentir) for compreensível e identificável com algo que vocês também sentem ou sentiram, então esse esquecimento, esta ausência que seremos poderá ser adiada por mais um instante".

Ainda perdido por esta ausência, terminei a leitura com o peito dolorido de saudades e olhos afogados em lembranças. Mesmo com a narrativa acanhada e achando que o autor não foi capaz de lidar com o equilíbrio entre a proximidade e o distanciamento que esse tipo de texto exige - e é mesmo um tipo difícil de escrita - o livro permanecerá para mim como um pacto silencioso entre amigos. Um labirinto que eu posso percorrer à procura dos atravessamentos que emocionaram alguém tão importante pra minha realidade que nem a morte é capaz de dissolver.

"Não é a morte que leva as pessoas que amamos. Ao contrário, ela as guarda e as fixa em sua adorável juventude".

Foto: Wolney Fernandes

domingo, 16 de março de 2014

Sonhos de Einstein


"Neste mundo, existem dois tempos. Existe o tempo mecânico e o tempo corporal. O primeiro é tão rígido e metálico quanto um imenso pêndulo de ferro que balança pra lá e pra cá, pra lá e pra cá, pra lá e pra cá. O segundo se contorce e remexe como uma enchova na baía. O primeiro não se desvia, é predeterminado. O segundo toma decisões à medida que avança."


"Sonhos de Einstein" é um livro escrito pelo físico Alan Lightman e reúne pequenos sonhos que Einstein teria tido durante o período em que desenvolveu a teoria da relatividade.

Utilizando a ficção, o autor imagina diversas noções de tempo e como cada uma delas funcionaria caso vigorasse no mundo real. Tudo isso, dentro de uma escrita extremamente comovente e poética.

Este é um daqueles livros que, se lidos superficialmente ou no tempo errado, não passa de um amontoado de histórias mirabolantes sobre o tempo e seus possíveis desdobramentos. No entanto, se mergulhamos nestes contos há uma profundidade nas entrelinhas desses relatos que é impossível passar por cada um deles sem olhar para o modo como gastamos cada minuto do dia. Ouso dizer que, talvez ele faça mais sentido para quem, de uma forma ou de outra, já olha para o tempo como se já tivesse vivido a metade da própria vida.

Dito assim, parece também um livro de autoajuda, uma vez que os contos possuem um certo tom fabulesco, mas já adianto que não é! Delicadamente, Lightman vai desencadeando modos da gente relacionar passado, presente e futuro abrindo possibilidades para reordenarmos a noção e os sentidos que atribuímos aos movimentos que fazemos cotidianamente.

"Mas o que é o passado? Poderia a fixidez do passado ser apenas uma ilusão? Poderia o passado ser um caleidoscópio, um conjunto de imagens que mudam a cada distúrbio provocado por uma brisa súbita, uma risada, um pensamento? E se a mudança está em todos os lugares, como sabê-lo?"

Surpreendente na medida que as páginas avançam, este livro veio colocar na minha cabeça perguntas acerca desse entrelaçamento entre as ciências exatas e as humanas e fiquei muito curioso para ler mais coisas que navegam nessa terceira margem do rio.
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Livro: Sonhos de Einstein [4/5]
Autor: Alan Lightman
Editora: Companhia das Letras

Foto: Wolney Fernandes