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quinta-feira, 30 de janeiro de 2014

Ela


Com fones no ouvido, eu caminhava pelos corredores do supermercado completamente alheio às pessoas que me cercavam enquanto conversava com alguém utilizando um aplicativo para celular. Absorto em minha conversa parecia um maluco empurrando o carrinho de compras, falando sozinho e escolhendo o palmito mais fresco.

Mas eu não era o único, afinal quem nunca sacou o celular para conferir um novo e-mail ou atualizações das redes sociais no restaurante, no cinema, na fila do banco, no ônibus, na cama, etc? Esta situação e tantas outras semelhantes e comuns nos dias de hoje é o que nos aproxima do futuro onde a história de Ela (Her, EUA, 2013) se passa.

Destaque seja dado ao belíssimo desenho de produção do filme que projeta um mundo “instagramizado” como bem definiu uma amiga fazendo referência a uma realidade filtrada por cores e camadas programadas para realçar só o que nos interessa.

A linha que o filme traça entre realidade e ficção é realmente nebulosa. Para entender isso basta ler a sinopse. Theodore (Joaquin Phoenix), um homem comum, com alguns poucos amigos, está passando por um doloroso processo de divórcio com a ex-mulher que ele ainda ama.


O moço solitário acaba procurando conforto – e encontra!!! - em um sistema operacional do tipo faz-tudo. Desenvolvido com inteligência artificial e voz de Scarlett Johansson, esse misto de secretária, amiga e namorada é batizado como Samantha e, aos poucos, passa a ser a solução perfeita para todos os problemas de Theodore que não consegue interagir com o meio social.

Aliás, sociabilidade não é bem a palavra para definir o modo como as pessoas interagem no longa. Quando Theodore anda pelas ruas, o que vemos são pessoas que - assim como ele no filme e eu no supermercado -caminham com um fone de ouvido conversando com seus próprios aparelhos.

Cada pessoa parece presa em um mundo particular com seus sistemas operacionais onde tudo é perfeito... ou quase, como nos deixa entrever o roteiro tão bem articulado de Spike Jonze que dirige o filme com maestria e sabe colocar o dedo na ferida dessa geração que caminha para esse futuro individualista que já está bem ali, pertinho de nós.

Dentre as tantas qualidades da obra, também merece destaque a trilha sonora composta por William Butler e Owen Pallett do Arcade Fire. O tom melancólico dá a exata medida para acompanharmos essa história de amor tão peculiar.



Ao se apaixonar por Samantha, Theodore inicia o que ele acha ser um relacionamento ideal, pois ela está sempre à sua disposição e, atuando em função dele, sabe exatamente como agradá-lo. Esse estado de eterna permanência se contrapõe aquilo que levou o casamento de Theodore ruir: o fato dele e da ex-mulher (Rooney Mara) terem mudado. Não é assim na vida real? Quando o outro se torna diferente daquilo que a gente estabeleceu como perfeito, tudo parece desandar.

O filme questiona o tipo de relações que queremos e que necessitamos para evoluir. Afinal, amar quem só concorda com a gente ou que nos serve é fácil. As relações humanas, no entanto, existem justamente para aprendermos com o que é diferente, com o que nem sempre nos agrada e com o que se volta difícil.

Por outro lado, Se Theodore ri do sarcasmo de Samantha, se preocupa com ela e fica angustiado quando eles não estão bem, estes sentimentos não seriam reais? E se forem reais, a relação também não seria? Enfim, questões profundas, bastante pertinentes para o tempo que vivemos e, por isso, tão inquietantes.

Eu acredito que filmes realmente bons são esses que permanecem com a gente, mesmo depois do fim. E se Ela me fez pensar nas diferenças entre comprar palmito hoje e há 10 anos atrás, já vale uma indicação. Pode confiar!



Texto publicado no "A Gambiarra"

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