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terça-feira, 29 de outubro de 2013

Vontades


O funcionar exato das engrenagens eu [ainda] não sei, mas a vontade de rio nunca sai daqui.

A foto é de Zachary Yotte

Sem cortinas na janela


Tudo abarrotado do lado de cá: a parte de cima do guarda-roupa, o peito e a estante de livros. A persiana da janela quebrou no primeiro semestre e eu nunca mandei consertar. No lugar, só uma cortina antiga que eu amarrei, desajeitadamente, para fingir uma pequena rusga com os primeiros raios solares.

Não sou uma pessoa prática. Tenho dificuldades de jogar as coisas fora e demoro seis meses antes de querer trocar a persiana quebrada. Mesmo assim, um desânimo mortal me toma ao me imaginar diante de um catálogo inteiro de cores, materiais variados e vinte ou trinta dias de espera até que uma nova persiana fique pronta na justa medida da minha janela.

Com ou sem persiana, não consigo acordar tarde mesmo. Da mesma forma que, apesar da vontade, nunca consigo passar das três primeiras páginas de Grande Sertão Veredas.

Talvez eu goste de brincar com a nesga de sol que a cortina sempre deixa escapar, mesmo estando fechada. Ou de dormir o sono dos justos sabendo que o grande volume de capa dura - encadernado com tecido branco e bordado com letras vermelhas - da obra prima de Guimarães repouse ali do meu lado contendo todas aquelas citações que eu adoro, mesmo sem ter passado por cada uma delas.

Sei lá!

Os abarrotamentos são tantos e, mesmo que a culpa de todos eles seja minha, vez por outra eles transbordam pelo meu peito, pela estante, pela janela. Quando isso acontece, sempre espero que o destino equilibre minhas forças com a Mega Sena acumulada, com o amor que, sem avisar, interfone para o décimo andar e diga: "estou aqui!" ou qualquer coisa que se abra num grande carnaval.

Para ultrapassar a barreira da lamentação, por ora me basta apenas essa desconfiança de que na vida exista um momento em que finalmente aceitamos nossa natureza e podemos admitir sem vergonha que gostamos de janela sem cortinas, mesmo correndo o risco de termos nossos sonhos assaltados pelo sol nas primeiras horas da manhã.

Foto: Wolney Fernandes

"Um pequeno retorno à felicidade"

E se Deus for uma criança assim?



sábado, 26 de outubro de 2013

A Lua Me Disse


Coloco o livro na mesinha à minha frente enquanto sou enforcado pelo último botão da capa que envolve meus ombros e aperta meu pescoço. Reclamo ao cabeleireiro, mas o papo que ele trava com a mulher  ao lado parece bem mais eloquente que o meu pedido de socorro.

Tenho sorte porque a atenção da mulher sob a touca de papel alumínio se volta para o livro que eu deixei na mesa: "Posso ver?" ela pergunta já estendendo a mão sobre o mesmo. Incapaz de pronunciar uma palavra, eu aceno que sim com a cabeça, e finalmente meu desespero é notado pelo cabeleireiro que afrouxa a capa e dá início à preparação do corte.

"Máquina 1 ou 4?"

Antes que eu responda ele já está com a máquina de número 1 ligada e, graças a minha gagueira, quase saio de lá pronto para me ingressar no exército. Respiro fundo enquanto a dona do lado folheia o livro demonstrando todo o interesse em encontrar naquelas páginas um sentido para sua vida.

Depois da máquina, sinto a tesoura raspar de leve a minha orelha e minha atenção se volta para as mãos rápidas do cabeleireiro com aquele medo-menino de ter parte da orelha arrancada. Fecho os olhos e rezo.

Minha oração é interrompida pela dona do lado que me cutuca para perguntar de onde é o autor do livro. Abro os olhos com medo do que vou ver no espelho e respondo rapidamente que Valter Hugo Mãe é de Portugal. Boquiaberta, a senhora revela aos quatro cantos do salão que o referido escritor parece ter burilado para ela os trechos devorados naqueles minutos de leitura de "Nosso Reino".

Já conformado com o estrago que as mãos pesadas do profissional vai fazer na minha cabeça, vejo que minha vizinha de espelho anota algo que ela encontra no livro: "Estou pegando o endereço da editora para tentar contato com ele. Sou espiritualizada e minha vida é regida pela lua. Encontrar esse livro aqui só pode ser um sinal. Preciso desse homem na minha vida" - explica como se estivesse fazendo a lista de compras da semana.

Antes que eu consiga esboçar um sorriso, uma funcionária do lugar aparece por trás da leitora e ameaça tirar a touca que ela traz na cabeça: "Vamos cortar desta vez?" pergunta a profissional. "Nem pensar!" responde com eloquência e completa: "Lua minguante, minha filha! Ninguém toca em um fio do meu cabelo nesse período".

Prometo a mim mesmo que da próxima vez, vou esperar um eclipse lunar antes de me aventurar novamente por salões do Centro da cidade. "Lua minguante para o cabelo, mas crescente para as coisas do coração" ela me explica em tom confidencial com o endereço da editora anotado em um pedaço de papel que ela dobra e guarda entre os seios fartos.

Não consigo conter meu riso e, por um instante, me esqueço da festa que acontece na minha cabeça e para a qual nem fui convidado. Meu sorriso morre ao olhar no espelho e ver o barbeiro abrir a gaveta à minha frente com um movimento rápido.

Ele pega a navalha. Eu engulo seco.

Imagem capturada aqui

Vozes femininas


No embalo de vozes femininas fiz o caminho de volta para Goiânia. Nessa toada, a viagem foi recheada com boas descobertas.

01. Proud - Heather Small
02. Wildest Moments - Jessie Ware
03. PrimeTime - Janelle Monáe
04. O Céu do Dia em que Nascemos - Daniela De Carli
05. Running to the Sea - Royksopp ft. Susanne Sundfor
06. Satellite - Little Boots
07. Thirteen Thirtyfive - Dillon
08. Kiss - Mélanie Laurent
09. Cross Your Fingers - Constance Amiot
10. Do You Remember - Ane Brun
11. Daniel - Bat For Lashes
12. Por que Brigamos - Bárbara Eugênia
13. Riverside - Agnes Obel
14. It's Not - Aimee Mann
15. Runaway Love - Alice Gold
16. Concha do Mar - Ana Clara Horta
17. How Many People - Ayo
18. This Girl`s Prepared For War - Bic Runga
19. Palavras do Coração - Bruna Caram
20. For Everything A Reason - Carina Round

Foto: Wolney Fernandes

quarta-feira, 2 de outubro de 2013